segunda-feira, 10 de novembro de 2025

INDO PARA ONDE?

 


   A ficção de Nuno Bragança tem subjacente uma visão do Homem e do Universo que assume claramente a perspectiva evolucionista, mantendo-se esta em pano de fundo, mas aflorando frequentemente à superfície do texto. Esta questão ganha um particular relevo pelo facto de o autor ser um católico progressista, podendo esta opção, por esse motivo, entrar em conflito com as directrizes da Igreja. Porém, ela é facilmente explicável se tivermos em conta a contemporaneidade do autor com as teorias do cientista e teólogo francês Teilhard de Chardin e do historiador Arnold J. Toynbee, ambos referidos e citados pelo auitor.
   A presença desta perspectiva manifesta-se nas frequentes referências à sequência evolutiva do Homem e do Universo, mas também no posicionamento e no questionamento dos narradores e personagens, que de várias formas articulam e equacionam a frase «Vindos donde, indo para onde?»

La Salette Loureiro, in Nuno Bragança - Mudar a Vida, Transformar o Mundo - Ensaios, Edições Esgotadas, 2024, p. 121.

domingo, 9 de novembro de 2025

EMPREENDEDORISMO

 
Quitéria anda numa de brainstormings em busca de insights impactantes que libertem o know-how para um pitch de um business plan verdadeiramente empoderado.

sábado, 8 de novembro de 2025

UM HOMEM INSEGURO

 
Era um homem inseguro
desde que, em criança,
pendurado numa árvore,
sentira quebrar-se o ramo
e estatelara-se no chão
como um pássaro bebé
acabado de sair do ninho.
Transportou pela vida
esse sentimento de queda,
a vertigem do alpinista
à borda do precipício.
Era alguém de confiança
que desconfiava do mundo,
começando por si, desde
aquele dia de uma queda
continuada que findaria
apenas à hora da morte,
quando, adormecido de pé,
tombou sobre o vazio
batendo com a cabeça
num coração de mármore.
 
Juraan Vink, do "Livro das Memórias".
Versão de HMBF.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

ÓRFÃOS

 


ÓRFÃOS
de Dennis Kelly
 
20 de novembro a 13 de dezembro
Sala Estúdio do Teatro da Rainha
 
   Até onde estaria disposto a ir na defesa de um familiar? Este podia ser o mote de Órfãos, peça de Dennis Kelly que, desde a estreia em 2009, nunca mais deixou de ser encenada um pouco por todo o mundo. A criação que o Teatro da Rainha traz agora ao público português, com tradução e encenação de Henrique Fialho, reforça a questão inicial buscando desmontar a lógica do “nós ou eles”, do “quem conhecemos contra quem não conhecemos”, das “pessoas de bem vs. pessoas de mal”. A partir de 20 de novembro, de quarta a sexta-feira, até 13 de dezembro, sempre às 21h30, a Sala Estúdio do Teatro da Rainha será palco de um jantar romântico convertido em laboratório do mal.
   Helen (Inês Barros) e Danny (Tiago Moreira) estão a desfrutar de um momento apaixonado na vida de casal quando são surpreendidos pela chegada abrupta de Liam (Fábio Costa), irmão de Helen, manchado de sangue do tronco para cima. À dúvida sobre o que terá acontecido, seguem-se incertezas sobre como proceder face às explicações contraditórias de Liam. Com diálogos impressionantemente bem concebidos, a trama desenrola-se através de uma sucessão de argumentos, lapsos e falácias, típica dos thrillers psicológicos cuja marca essencial é o suspense que garante tensão do princípio até ao fim.
   A entrada em cena de Liam é o motor de arranque de uma discussão sobre a volatilidade dos laços familiares, as fracturas sociais, a criminalidade, o aborto, os efeitos da imigração, o racismo, a tortura, a alienação da consciência moral e dos valores que a sustentam. Tal como o título indica, estamos perante um objecto em que o desamparo e o abandono são marcas essenciais, ainda que não devam ser lidas de modo literal. A orfandade aludida na peça dá-se tanto no plano familiar como no plano social. Disse o próprio Dennis Kelly, em entrevista a Lyle Brennan (The Skinny), que o título «se refere a uma sensação de nos sentirmos órfãos dentro da sociedade.» (2009).
   Uma das dimensões mais interessantes neste trabalho do dramaturgo inglês é precisamente o modo como nele se processa o encontro entre uma sociedade corrompida pela violência, pela cultura do ódio, e uma família num momento de disrupção motivado pelo confronto com a realidade. Em Órfãos não vislumbramos nenhuma tentativa de nos convencer do que quer que seja. A situação abordada é antes exemplo de como nenhuma pessoa está a salvo da barbárie e da crueldade.
   Com tradução e encenação de Henrique Fialho, Órfãos conta com a interpretação de Fábio Costa, Inês Barros e Tiago Moreira, cenografia de José Carlos Faria e desenho de luz de Hâmbar de Sousa. Mais informações em teatrodarainha.pt.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

ISTO NÃO É O BANGLADESH

 


Eis mais um exemplo do que a cheganofilia anda a promover, uma democracia indefesa que décadas de desleixo no ensino, na cultura e noutras áreas sociais transformaram o país numa máquina de produzir bestas. Bestas de bem, lá está, com genes portugueses puros. Tudo o mais é matéria de levar ao vómito, num ano profícuo em percepções de criminalidade que varrem para debaixo do tapete as evidências e se apressam a limpar provas:

"Segundo Nivia Estevam, o episódio de segunda-feira aconteceu depois de já ter feito outras queixas relativas a “puxões de cabelo, pontapés e enforcamento”, sendo que “nenhuma atitude foi tomada pela escola”. A mãe criticou o facto de, na segunda-feira, a escola não ter acionado a PSP, não lhe ter explicado a gravidade da situação (da qual só se apercebeu quando já ia na ambulância) e de as funcionárias terem limpado “todo o local” do incidente."

Juntem agora a isto os influencers que violaram uma adolescente e partilharam o vídeo, o tipo que atropelou e fugiu para acabar a dar entrevistas em sinal aberto, o não sei quantos Milhão mais os palhaços da Reconquista, as sucessivas agressões e perseguições sobre imigrantes tratados como gado pelo Estado, uma rapariga de 14 anos violada por um grupo de adolescentes em Viseu com vídeo a circular entre colegas, mais todo um rol de praxes que nos prova, de facto, não estarmos no Bangladesh. Estamos mesmo na merda em que estamos.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

ZOHRAN MAMDANI

 
Depois da Irlanda e dos Países Baixos, uma notícia animadora chega de Nova Iorque: "Em Nova Iorque, Zohran Mamdani, de 34 anos, foi eleito presidente da câmara, tornando-se o primeiro muçulmano, o primeiro nova-iorquino de ascendência sul-asiática e o primeiro nascido em África a liderar a maior cidade do país. Mamdani derrotou o ex-governador Andrew Cuomo e o republicano Curtis Sliwa, consolidando a ala progressista do Partido Democrata."

terça-feira, 4 de novembro de 2025

ESPELHO


 

Imagina que te vias ao espelho
e em vez da beleza de narciso
ou da ausência de reflexo do vampiro
encontravas um corpo frágil e efémero
como qualquer corpo, mero composto
de carne e alma, com raízes no que foi
e previsões do que já não é. Por quem
espera o espelho? Quem espera o
espelho reflectir no desamparo
da superfície vitrificada? Talvez
ao te encontrares assim desprotegido
percebas por fim o sentido da mesa vazia
que nos aguarda quando, consumidas,
as velas emitirem apenas escuridão.
E então tudo será mais claro, nós
sozinhos num corpo que nos foge.
 
Nota: instantâneo pré-ensaio, com a Inês Barros a pensar, por certo, numa Helen que poderão descobrir a partir do próximo dia 20 na Sala Estúdio do Teatro da Rainha. "Órfãos", de Dennis Kelly, foi mais um desafio do Fernando num laboratório que se tornou escola para se transformar em casa. Sempre a aprender, até o corpo me fugir. Espero pela vossa visita. Saúde.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

LEVAR NO PACOTE LABORAL

 
Televisões e jornais ocupam tempo e enchem páginas com discussões sobre greve geral, mas Quitéria quer antes saber quais as 100 matérias que o Governo pretende rever na legislação laboral. Dá para informar?

domingo, 2 de novembro de 2025

ESTOU POR TUDO

 
Estou por tudo, trema a terra
e encolham-se as paredes,
ardam quilómetros de chamas
e encha-se de cinza o pulmão
da esfera, não quero mais saber.
Estou pelo que vier, o mesmo
de sempre, na previsível cauda
dos rios tendendo para a foz.
Sequem as nascentes, façam-se
polpa as raízes, batam asas os
porcos e miem os alfabetos,
eu estarei onde sempre estive:
dentro desta crosta de palavras
lambidas pelo credo de viver
contra o medo que tolda a luz
e as tácticas que dão dores de
barriga e os espinhos no crânio
das conveniências. Venham
os trovões e os relâmpagos e as
tempestades de granizo, eu estou
por tudo quanto possa expelir
o sangue quente da carne viva.
 
Juraan Vink
Versão de HMBF.

sábado, 1 de novembro de 2025

ROB JETTEN

 
Depois da Irlanda, uma boa notícia chega dos Países Baixos: "Eleições nos Países Baixos: Rob Jetten e democratas do D66 festejam vitória quase confirmada. Com mais de 99% dos votos contados, a vantagem democrata já não poderá ser suplantada pela extrema-direita, avança a agência noticiosa holandesa ANP. Geert Wilders não concede a derrota do PVV. (...) Líder do partido com maior representação na Tweede Kammer (a câmara baixa do Parlamento), Rob Jetten surge como o provável próximo primeiro-ministro dos Países Baixos. Aos 38 anos, será o mais jovem de sempre e o primeiro abertamente homossexual. É um progressista de centro-esquerda, social e economicamente liberal."

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O DIA DE ONTEM

Ontem telefonei a um amigo para lhe pedir um contacto, motivação interesseira tantas vezes na origem do que nos leva a falar uns com os outros. Lá desabafámos sobre a vida em que andamos metidos, com respectivas queixas sobre o mundo e a dificuldade crescente de arrancar o povo às redes e lixo televisivo. Depois fui trabalhar e depois do trabalho continuei a trabalhar, até que, num finalmente momento de pausa, cometi o pecado de, também eu, pegar no telemóvel e espreitar o fluxo noticioso. Devia ter ido a um café beber um copo de vinho, ler mais umas páginas do Nuno Bragança, fazer um desenho, escrever meia dúzia de linhas. Pequei. A primeira coisa que me apareceu no telemóvel foi um vídeo de uma praxe em Tomar, com humilhados enfileirados, de joelhos, e um imbecil aos berros convencido de que exercia sobre os outros uma qualquer forma de poder indistinguível da humilhação infligida por altas patentes a soldados rasos. Que pessoas andamos nós a formar?, interroguei-me. E nisto de me interrogar pensei nos pais daqueles rapazes e daquelas raparigas, no que andarão a fazer e no que fizeram ou não fizeram para transmitir alguns valores. Quais? Ocorreram-me igualmente queixas de ex-colegas sobre o ambiente nas salas de professores, com cada vez mais docentes desavergonhadamente racistas, xenófobos, homofóbicos, escudando-se em declarações preconceituosas e estereotipadas sobre a sociedade em que vivem e pela qual têm enorme responsabilidade. Pensei nos cartazes racistas do partido que não quer ser chamado de racista, tal como os estúpidos que não querem ser chamados de estúpidos porque, enclausurados na sua estupidez, são incapazes de reconhecer que lhes falta qualquer coisa - estudo, trabalho, humildade - para serem minimamente informados. Nisto de tanto pensar vim para casa, deitei-me no sofá a ouvir o relato do Sporting na CMTV, ou seja, num canal de televisão execrável que me oferecia gente a ver bola e a comentar o que via. Nas notícias, mais um grupo de adolescentes que violou uma rapariga de 14 anos e exibiu as imagens nas redes sociais, isto depois de termos começado o ano com influencers a violarem uma menor em Loures e ainda há dias termos dado com uma mãe assassinada pelo filho de 14. Nada disto é ou pode ser por acaso, tudo isto está relacionado com o clima de ódio e a cultura do medo que promovemos com descaso e permissividade. Da ausência de valores e educação no seio familiar à desumanização do ensino, passando pelas praxes e acabando nos exemplos dados com cartazes e deputados aos berros, o caminho para o pior está desbravado. Resta saber como invertê-lo. A ver a CMTV não é de certeza. Isto, de facto, não é o Bangladesh. Isto é uma latrina cada vez mais irrespirável. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

ENTRETENIMENTO

 
"Tive que gramar com o Badaró, depois com o Batatinha e, mais tarde, com o macaco Adriano. Porra, podiam ter-me poupado ao Ventura." Quitéria dixit.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

OS NÃO-INTOXICADOS

 
«Ah, o olhar fácil, abutresco, dos (clinicamente) não-intoxicados. A lampeirice dos que arquivam no desprezo (teórico e prático) os e as que agarram a seringa ou a garrafa ou o comprimido – ou tudo junto; o fareisísmo de quem se droga de «bom comportamento». A filha-de-putice dos meninos e meninas exemplares, que curtem a deplorável acidificação de quem não espera mais da vida do que o sucessozinho passageiro; aquele ferrado de polvo com que agarram quem se aproxima dos tentáculos do «como-deve-ser». Puta filha de puta de «legalidade»; como não cagar em ti, pra ser honesto? E porventura sabe algum dos instalados o que aponta a porta estreita da liberdade? Fechados no conforto das suas rodinhas, os como-eles, os instalados: cabrões, gerados por (e gerados de) imperdoáveis cornos, com que agridem dia a dia todo o progredir humano.»

Nuno Bragança, “Directa” (1977).

terça-feira, 28 de outubro de 2025

ESTIGMAS

 
Tendemos a julgar os "estigmas raciais" mais em função da cor da pele do que em função de preconceitos de classe, estereótipos políticos ou de um certo etnocentrismo cultural instalado no Ocidente. Ora, fenómenos como o de Bolsonaro no Brasil ou o de Trump nos EUA demonstram como estamos errados. Há tempos, li um artigo sobre o aumento de apoio a Trump entre os negros. Ventura também se gaba de ter ex-imigrantes na bancada do Chega, pessoas a que chama portugueses não originários. Hoje, mais do que a cor da pele, o que mexe com os nervos da extrema-direita que pulula nos corredores do poder é uma ideia de superioridade cultural relativamente a tudo o que não seja católico, evangélico, cristão. Eles não odeiam os hindustânicos por serem um pouco mais escuros do que os ruivos de Albufeira, mas sim por julgarem que os hindustânicos são todos muçulmanos. Mesmo os que sejam hindus ou budistas ou outra coisa qualquer. O que eles não suportam é o islamismo e o comunismo ou o socialismo, que os broncos dos states associam à imigração sul americana. Mais do que a cor da pele (os judeus odiados por nazis eram brancos), o que está sempre em causa é o modo como te vestes, a quem oras, a etnia a que pertences, o partido em que votas. O que eles odeiam é a diferença, o que não suportam é tudo o que não encaixe nos seus uniformes. O acolhimento aos ucranianos lourinhos nunca seria o mesmo a oferecer aos palestinianos escurinhos, não apenas por uns serem louros e os outros não. É que os primeiros são como nós, isto é, facilmente se ajoelham em Fátima, os segundos não.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

TEMAS

 
Temas que surgem durante os ensaios: Markham Street, Shackleton, basmati crocante, feiras de máquinas a vapor, Petrocelli, Lynx, sofás John Lewis, I’m alright Jack, o movimento graffiti de Philadelphia nos anos 80, eagle-star, trip-hop, Nietzsche para além do bem e do mal, Pinter e o problema da verdade... Qual a melhor forma de arrumar o desarrumado? “Órfãos”, de Dennis Kelly, estreia dia 20 de Novembro.